A seca não é só de água… 


Onde está o dinheiro? É urgente para a reabilitação de condutas.

Existem 120 000 km de condutas de água e para garantir uma qualidade de serviço mediana, é necessário reabilitar 1 200 km de condutas/ano, o que dá 5 km de condutas por cada entidade gestora (EG), igual a um valor estimado de investimento na ordem dos 2,5M€.

Ora, de acordo com o Anuário Financeiro dos Municípios Portugueses 2020, 13 EG têm um total de 10M€ de resultados líquidos positivos e 10 EG têm um total de 10M€ de resultados líquidos negativos.

Se calcularmos que, as restantes EG sobrantes, 2/3 têm um resultado líquido igual ao 13º classificado do ranking de melhores resultados económicos (35m€), temos um total de resultado líquido positivo de 5M€; e se calcularmos que 1/3 têm um resultado líquido igual a 2/3 do 10º classificado do ranking de piores resultados económicos (-67m€), temos um total de resultado líquido negativo de 5M€.

Somados, temos, assim, (+)10M€ + (+)5M€ – (-)10M€ + (-)5M€ = 0€.

Na melhor das hipóteses temos, então, 0€ disponíveis, por parte do total das EG em baixa, para investir na reabilitação de redes.

Sendo certo que a proposta do Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030 (PENSAARP 2030) apresenta como cenário médio de investimentos a desenvolver, o valor de 5,5mM€ para Água e Saneamento – tem alguma lógica de aproximação com os cerca de 15mM€ investidos nos últimos 30 anos, pois, a 5mM€ a cada 10 anos, vai dar ao mesmo – que as EG têm 0€; que se somarmos o 1% de reabilitação de condutas/ano (necessária a uma qualidade de serviço mediana) pelos 10 anos deste Plano, chegamos a um valor similar de necessidade de investimento (só para a água), de 5,75mM; que o PRR abrange, no que respeita à gestão hídrica, apenas duas regiões do País, o Algarve e a Madeira e o aproveitamento hidráulico de fins múltiplos do Crato, com um valor total previsto de 441M€; que de acordo com o anterior Ministro do Ambiente, o Portugal 2030, no que ao POSEUR diz respeito e para o Ciclo Urbano da Água, só irá disponibilizar 800M€; a pergunta que se impõe é: onde é que se vai buscar o dinheiro?!

Com as dificuldades de gestão diária, fruto de um aumento brutal dos custos operacionais das EG (energia, combustíveis, matérias-primas, equipamentos, materiais, empreitadas), que nenhuma atualização tarifária baseada no IPC anual, de 4,16%, face a uma inflação de 9%, poderá resolver, será que é desta que o governo, através do Fundo Ambiental, acorre em defesa e salvaguarda da sustentabilidade das EG? Poderá o Fundo Ambiental disponibilizar parte do seu inflacionado orçamento para uns tão preciosos (e, já agora, legítimos e legais) subsídios à exploração?

O Fundo Ambiental tem um orçamento de 1125 milhões de euros para 2022, o maior de sempre, segundo o despacho que determinou os apoios a atribuir durante o corrente ano, verba que compara com o valor de 571 milhões de euros, orçamentada para 2021.

Quem paga? Os utilizadores finais, pois claro

Pode ler-se (há muito…) no Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais, que os preços a fixar pelos municípios, relativos aos serviços prestados e aos bens fornecidos pelos serviços municipalizados e por empresas locais, não devem ser inferiores aos custos direta e indiretamente suportados com a prestação desses serviços e com o fornecimento desses bens.

No que respeita aos encargos mensais suportados pelas famílias portuguesas em 2020 com os serviços de água e saneamento de águas residuais, verifica-se que o utilizador final teve, em média, para um consumo de 10 m3 de água, um encargo mensal de 20,43€.

Portugal regista cerca de 6M de fogos de habitação, dos quais, cerca de 1M se encontram devolutos. Assim e assumindo que a cada fogo de habitação corresponde um local de consumo, existem cerca de 5M€ locais de consumo em Portugal.

A 20,43€ de consumo mensal, distribuído pelos 5M locais de consumo, temos uma receita anual de 1,226mM€. Ao fim dos 10 anos preconizados no PENSAARP, recolheríamos, diretamente do utilizador final, um total 12,258mM€, o que corresponde, grosso modo, ao dobro do valor de investimento previsto e necessário para a intervenção nas redes.

Escusado será dizer que nenhuma EG tem capacidade para libertar metade da sua receita, para poder suportar o investimento previsto.

Um aumento generalizado das tarifas na ordem dos 40%, levaria a que o consumo mensal correspondesse a uma receita mensal de 28,60€ e a uma receita anual de 1,7mM€, somados os locais de consumo, correspondentes a 17mM€ durante o período de vigência do PENSAARP, no qual se propõe, para cumprimento das medidas propostas, e de modo a reunir condições para que sejam alcançados “serviços bons e sustentáveis”, a prática de tarifas médias entre 2,56 e 3,28 €/m³ (entre 25,60€ e 32,80€/mês).

Isto significaria que, da necessidade de libertar metade da sua receita para suportar este investimento, passaríamos para 1/3, que poderia ser “aliviado” em mais metade desse terço, se considerássemos investimento público, ao longo destes 10 anos, no valor de 2,5mM€.

Face ao investimento total necessário calculado e considerando a disponibilidade de 800M€ por parte do Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (PO SEUR) do Portugal 2030, careceríamos de 1,7mM€. Se o Fundo Ambiental, para além do seu contributo, indispensável, com subsídios à exploração, disponibilizasse mais 10% do seu orçamento para estímulos ao investimento, são mais 1,1mM€ ao fim destes 10 anos. Faltam 600M€ e se o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) já assumiu a disponibilidade em garantir 400M€, só ficam a faltar 200M€, que bem poderiam por ele ser assegurados, tendo em conta o recente reforço desse Programa.

Para onde vai o dinheiro? Pode ir para o IVA injustificadamente cobrado

Um dos maiores atentados à sustentabilidade de algumas EG, mormente aquelas que foram constituídas, por agregação, ao abrigo da Lei 50/2012, reporta-se ao IVA do saneamento.

Embora estejam, pela sua natureza, sujeitas a princípios de gestão privada, tal não impede, contudo, que estas EG se configurem também como entidades públicas, se atendermos a critérios delimitadores do conceito, como a titularidade, o regime jurídico aplicável, o objeto e os fins prosseguidos. Até porque estas empresas, criadas e extintas por deliberação dos municípios beneficiam do mesmo enquadramento jurídico-tributário que foi facultado para os serviços municipais ou municipalizados.

  Ou seja, para não cobrar IVA aos utilizadores de saneamento, estas empresas beneficiam do mesmo enquadramento jurídico-tributário que foi facultado para os serviços municipais ou municipalizados; mas, para aplicação da taxa reduzida de IVA de 6%, nas empreitadas, tanto de água como de saneamento, à semelhança do que acontece com as autarquias locais, estas entidades já não beneficiam desse mesmo enquadramento jurídico-tributário.

 É que isto não só é um disparate, como é profundamente contraditório, para além de ser chocante como é que quem redigiu e tomou esta decisão consegue estar de bem com a sua consciência. A consciência, que aqui deste lado existe, custa 1,8M€, só em IVA não financiável nos projetos cofinanciados no âmbito do POSEUR.

A reparação desta injustiça é possível, por exemplo, com uma alteração legislativa que faça sujeitar IVA no serviço de saneamento sem qualquer exceção, o que comportaria numa clara poupança aos utilizadores dos sistemas geridos por municípios e entidades intermunicipais.

A não sujeição a IVA não permite a respetiva dedução por parte das EG, pelo que as mesmas têm de suportar, integralmente, todos os custos associados que fazem repercutir, naturalmente, nos utilizadores finais, onerando o valor da fatura. Apesar da carga fiscal infligida, pois as tarifas de saneamento passariam a incluir IVA, o valor total a desembolsar seria menor, pelo efeito da dedução que passaria a ser permitida às EG.

Quo vadis? De algures para nenhures

De acordo com a entidade reguladora (ERSAR) há um princípio indelével que se encontra na base da existência e do funcionamento destes Serviços, que é o principio da recuperação dos gastos, nos termos do qual os tarifários dos serviços de águas devem permitir a recuperação tendencial dos gastos económicos e financeiros decorrentes da sua prestação, em condições de assegurar a qualidade e continuidade do serviço prestado e a sustentabilidade das entidades gestoras, operando num cenário de eficiência, de forma a não penalizar indevidamente os utilizadores com gastos resultantes de uma ineficiente gestão dos sistemas

Por muito que alguns teimem em fazer de conta, importa atender a um outro princípio, que é indissociável do primeiro, o princípio do valor económico da água, por força do qual se consagra o reconhecimento da escassez atual ou potencial deste recurso e a necessidade de garantir a sua utilização economicamente eficiente, com a recuperação dos custos dos serviços de águas, mesmo em termos ambientais e de recursos, e tendo por base os princípios do poluidor-pagador e do utilizador-pagador, garantindo a sustentabilidade económica e financeira dos serviços.

E então, em que ficamos? Alguém com Poder, que responda

Nuno Campilho, Diretor-Geral da ABMG

Vice-presidente da APDA – Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas

In Diário de Notícias

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